LIVROS PUBLICADOS

O Homem Que Sonhou, 2021


"Estamos diante de um julgamento. Uma cerca de madeira, interrompida por uma pequena porta, separa o público dos advogados, juiz, oficial de justiça e arguido. Estão reservados três lugares na primeira fila de cadeiras destinadas ao público. Para lá da cerca, existe um pequeno banco corrido de madeira. Enquanto as pessoas da assistência ocupam os seus lugares, o juiz dialoga, sob tema impercetível e de momento irrelevante, com o oficial de justiça. Este usa uma capa. Os advogados de defesa e de acusação, trajando as suas togas, consultam documentos e ensaiam discursos internos. Um homem, vestindo fato preto formal, está em silêncio, ao centro, em cima de um pequeno estrado. Está de mãos cruzadas à frente e olha para baixo. Trata-se do arguido. 

À medida que o público se silencia, também o juiz, advogados e oficial de justiça se calam. Todos observam o homem ao meio. Ainda de cabeça baixa, o homem ao meio levanta o braço direito, como se solicitasse a palavra. Com exceção deste homem, que permanece inamovível, e como que espoletados por esse seu movimento, todos no palco adormecem sobre os braços. O homem desce do estrado e passa pela pequena porta da cerca de madeira. Observa o público, comprime as mãos. Com sobriedade, diz

— Estamos todos, hoje, aqui, para assistir a um julgamento. Serei eu o julgado, como pode, desde já, antecipar-se. (Pausa. Refletindo:) Tudo pode acontecer, quando nos esperam as palavras. Quando aguardamos o discurso e o que move ele. (Pausa.) A Instituição abriu contra mim um processo. Não me resignarei ao silêncio e prestarei o meu franco depoimento ao Meritíssimo Juiz. Não o adiantarei agora. Isto para não me repetir e não aborrecer. De todo o modo, considero relevante que os senhores conheçam a essência simples desse depoimento, antes de ouvirem o que será dito. Eu sou... culpado. (Sorri contida e humildemente.)Vejam bem como sou impertinente. Nem nos conhecemos e aqui estou, (Repousando a mão sobre o peito:) esperando que acreditem em mim. (Reverencioso, algo angustiado:) Pois que primeira impressão poderão ter os senhores, presenciando o julgamento de um homem? Como poderão confiar em mim o suficiente para crerem na minha declaração de culpa, de imputabilidade do facto de que sou acusado? Pois vos solicito a compreensão que tem a boa vontade. (Pensando, ao mesmo tempo que comprime e esfrega a testa com a ponta dos dedos:) Não, não a compreensão, pois também ela se debruça sobre a inocência. Peço, com a responsabilidade de uma moção de confiança, a vossa interrogação. (Solicitando:) Pois, por favor, questionem-se os senhores. Quem serão, no fim de contas, os julgados? Quem são, afinal, os julgadores? Quem resta de espetadores? (Pausa, deixando cair os braços. Aponta com a mão estendida:) Avanço, pois ali me esperam. (Humilde:) Se me dão licença. (Retira-se e coloca-se de novo ao centro, em cima do estrado.)

Todos despertam. O juiz toma a fala."



Choram Mães-Casa seus Filhos-Metade, 2021


"Eles são dez. Um é velho, outro rapaz, pai e seu filho, talvez irmãos. Pensam nos amores que deixaram, esconderam-lhes que não sabem se conseguirão voltar. Há uma mulher e uma criança, que procura nos olhos da mãe pelo medo que pode ter. Está um homem que nenhum dos outros conhece, olha além do mar negro, teme distrair-se da esperança. Há uma família. O pai segura todos nos seus braços, finge-se âncora. Há um menino, está sozinho e não sabe enganar o medo. A criança olha-o, procura-lhe coincidências. Ninguém ainda hoje sabe dele. Eles eram dez. Eles eram dez mil."



A Revolução dos Homens Sentados, 2020



«Um estava sentado. Outro passou e entregou-lhe a pergunta, O que espera? Inclinou-se para acomodar a resposta, caso viesse baixinho. A revolução, foi o que o sentado lhe disse. O que estava inclinado aguardou reflexão e depois disse, E como se faz a revolução de homens sentados? O sentado disse então para o inclinado, No vagar está o segredo. O homem inclinado baixou-se mais ainda para ouvir o que fosse, Então e qual é?, perguntou. O homem sentado respondeu, Ela tem de se fazer na gente, observo-a daqui para ver se vem inteira, sem alternativa, ainda não está pronta. Não está pronta, repetiu o homem inclinado. Ergueu-se e declarou, Sendo assim, avise se faz favor quando chegar. O homem sentado elevou o queixo para o homem levantado e disse, Também vem à revolução que houver na gente? O homem levantado disse, Pois sim, se somos feitos das mesmas necessidades, das mesmas faltas, confio que, se a revolução se fizer a si, lhe hei de ser próximo. O homem sentado sorriu e o homem levantado piscou o olho. Estavam combinados. Quando a revolução precisou de se fazer nos homens, tanto os sentados como os levantados saíram à rua.»




A Breve História da Menina Eterna, 2019



«Eve olhou para ela e a verdade tomou-a. Tinha dois anos, descobria um mundo no caminho de uma formiga. Devolveu à mãe o riso que leva o que não conhece. Ela soube ali. Morreria. Morrerá. Morrerás. Assim como nunca havido sido, haveria de deixar de ser. Nascera para morrer. O peito atomizou-se. Perguntou para quê. Zangou-se com o engano da natureza, com a humanidade perpetuada. À custa de filhos nascidos. Por tantos queridos. E tantos os nascidos são quantos os que mortos serão. A zanga não fez forças com o que não podia fazer mais. Era preciso deixá-la agora crescer, adiar-lhe a morte. Mas a dúvida carregou-se nela, assentou no arrependimento e cruzou-se com a possibilidade iminente do fim. Na ausência de realidade que lhe bastasse, decidiria fazer de conta.»



O Escritor e o Prisioneiro, 2018



«Era branca, como a bata branca que havia de estar por detrás dela. Lançou-lhe os nós dos dedos, de mão aberta. Duas vezes, que faziam uma. E outra vez. Só depois desta, ouviu o chiado do cadeirão livre do peso do convocado do outro lado, que se admitia a resposta. A porta aberta, que era a esperança.
— Então?
— Doutor, como vai (O que disse sem interrogar).
Desfez a surpresa, poupando os dois ao tempo que era desnecessário.
— Era preciso saber se não estou louco.
— O médico ergueu um sorriso clínico e mandou-o entrar.
— Senta-te.
— (Sentou-se) Tenho estado a pensar nisto e preciso claramente de experimentar em si algumas dúvidas. Importa-se que fume (Afirmou, esperando que o médico o contrariasse).
O médico estendeu a mão em direção ao cinzeiro sobre a mesa que apoiava o cadeirão onde se sentara o paciente.
— (Acende o cigarro e adianta) Havia muito silêncio, percebe. E muito tempo. E até o tempo que era dos hábitos deixou de ser dos hábitos e já era também da cabeça. Dediquei todo o tempo a ponderar sobre o que me rodeava. Receio que tenha sido demasiado.
— E em que pensavas tu?
— De início, pensava no que havia fora dali. Depois, o que havia ali dentro também passou a ocupar-me. É possível que tenha passado a confundir-se com a minha própria vida. A partir daí, tudo começou a ficar confuso. Os assuntos de fora nada tinham a ver com os de dentro e, no entanto, pareciam associar-se. Eu não queria pensar no que se passava ali dentro, mas era já só nisso que conseguia pensar. Considerei até que o que havia cá fora já não me dizia respeito. Julgo que foi nesse momento que passei a pertencer ali. Mas até para pertencer a algum sítio, é preciso sair dele por vezes, não acha. Eu pedi para sair. Para que pertencesse ali. Não me deixaram e creio que isso me enlouqueceu. Era preciso saber isso, percebe. (Respira) O que é preciso que eu lhe diga para que possa concluir alguma coisa?
— O que havia lá que te fizesse pensar mais do que te parece razoável?
— Havia um homem. Um escritor.»




A Alegria de Ser Miserável, 2018



«Ai. Foi só isto, mais nenhum ai se deu, mais nenhum ai se ouviu. À irmã, nos meios anos dos cinquenta, quase nada mais velha do que o iminente doente, mais nenhum ai foi preciso, aquele bastou para lhe pôr urgência no passo. Meia hora feita, estavam no hospital, vinte dias e umas horas depois, ouviam o diagnóstico do ai que lhe saiu. José de assento, Zé de cognome, nascido alentejano, em dia de abafura, nos altos do Marvão, recebia a sentença clínica, ‘Homem, você é um homem feliz!’. José, dêmos, por um instante, continuidade à intenção de seus pais, não percebeu a declaração, nem a irmã, Alma de chamamento e assento, nem nós, se não nos tivesse calhado este lado da narração. O médico esclareceu: uma embolia, interrompendo o fluxo sanguíneo no cérebro, havia afetado a região que processa essa emoção e outras dela vizinhas. Zé perdera a capacidade de sentir tristeza, ao que parece estava impossibilitado de ficar deprimido, perdera competências em ser miserável, estava condenado à infelicidade de ser feliz para sempre. É conveniente declarar ao bem-vindo leitor que não nos arrogamos na propriedade desta infeliz ideia, que do cardápio de medicina saiu e foi nestas linhas acolhida, sem censura, que muitas venham e boas.

Zé felicitou-se, pois, com a notícia, que o entristecimento já não morava nele, abalou, arredou-se para longe, deixou o dono abandonado aos amargos das desinfelicidades, se bem que a estes andamentos do pensamento já não chegasse ele. Alma, ainda que dotada de capacidades de miserabilidade, viu a melhor cara da novidade, apalmadou o irmão nas costas e disse radiante, ‘Zé, já viste?, nunca mais te vais sentir triste, homem!, acabou-se essa tua amargura!’. Se pouca diferença o fenómeno fizesse a cabeças na lua, otimistas de olho no ar e pés fora de terra, que otimistas de olho no alto e pés agarrados cá abaixo, competentíssimos na fazedura de improbabilidades, têm cá boa pertença, mas, dizíamos, se pouco alterasse o estado emocional habitual de um puro otimista, já no Zé desta Alma, a coisa era diferente. Zé, conhece-o bem a irmã, há tantos anos quantos os que se lembra a respirar, sempre fora um pessimista de aparente irremediabilidade, pesaroso nas sentenças à vida, à sua e à dos outros, inóspito ouvinte de maleitas e benfeitas, que, se veio mal, vai pior. Se alegria houvesse, e festa se anunciasse para a celebrar, Zé era convocado por carta, para não contaminar contentamentos.»

Críticas

Deus Me Livro
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O Sabor dos Meus Livros
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Ensaio sobre o Dever (Ou a Manifestação da Vontade), 2017

Finalista LeYa 2015




«Naquele dia, os olhos cegaram e os ouvidos ensurdeceram, entre outros sentidos que emudeceram, a não ser que outra tivesse sido a preferência expressa, em sede própria, do cidadão maior de idade. A inédita constelação de eventos de que se fez compor o invulgar fenómeno, categoria das coisas extraordinárias que nos pareceu justificar as despesas da narração, viria alterar irrevogavelmente os hábitos dos vivos, e só destes tratamos, porque aos mortos se reservam outras experiências, não menos marcantes certamente. Fez-se o bizarro acontecimento preceder de aviso, vinte e quatro horas antes.

O ponteiro curto do relógio apontava com precisão a norte, no meridiano de Greenwich, para a uma hora em Madrid, as duas em Praga e por aí afora, faça o leitor as contas, conforme o interesse, quando apareceu subitamente uma mensagem nos vulgares veículos publicitários, na televisão, na rádio e nas páginas dos jornais, e também em inusitados suportes de informação, como foi o caso das bulas de medicamentos, das instruções de lavagem de roupa e dos manuais de montagem que acompanham, quando o fabricante respeita a regulamentação vigente, as peças de um móvel que ainda não o é, já que, nos dias de hoje, a compra de mobiliário mais em conta cumpre também, veja-se bem, uma função lúdica. A missiva anónima dizia o que se passa a citar, ‘Serve esta mensagem o propósito de informar os senhores que têm até ao dia de amanhã, ao meio-dia, para escolherem um dos sentidos da natureza, a saber, visão, audição, olfacto, tacto, paladar, com exclusão do apelidado sexto sentido, dado que, neste último caso, é o sentido que escolhe o portador, em caso algum podendo ocorrer o inverso. Dessa hora em diante, ficarão munidos apenas do sentido escolhido’. Continuava, esclarecendo, ‘Estão dispensados do exercício de escolha os menores de idade, os quais poderão gozar inteiramente dos sentidos de que são já portadores’. Finalizava com a seguinte informação, ‘Nenhuma pessoa se poderá escusar ao processo supra mencionado, que, porém, é individual e respeitará e obedecerá à vontade e à consciência de cada um’.»

Críticas

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