A Cerca



Era uma vez um homem. E a sua cerca. Perguntaram ao homem uma vez o que pensava ele da sua cerca.

Não me ocupo dela, disse, sempre ali a vi, de tal modo que não a contesto.

E o que há para lá da cerca?, questionou o inquiridor.

Nunca me interroguei sobre matéria do outro lado. Considero a não ingerência mútua suficiente à coexistência.

E há benefício disso? Não fará falta ao outro lado o homem deste?

De modo a contribuir para os assuntos do outro teria de os aprender. Mas não há tempo.

O que faz com o tempo?

Existo.

Delimitado, porém.

Dado que me satisfaço com as ofertas deste lado e nada cobiço do outro, não me julgo delimitado. Não são limites, mas tão-só traços que nos separam no espaço.

Admitirá a segregação?

Só assim seria se os do outro lado pertencessem moralmente a este, ou eu ao outro.

O diálogo foi interrompido. Ouve-se o choro de alguém do outro lado da cerca.

Ouviu isto?, perguntou o entrevistador.

Ouvi, mas não há nada a fazer. Deste lado da cerca, não há espaço.

Mas está sozinho.

Sim, mas necessito do que sobeje para me expandir.

Como encontra satisfação na expansão se os do outro lado da cerca o solicitam para o essencial? Para a desnecessidade de choro, portanto.

Detemo-nos todos na condição à contingência do espaço originário.

E assim deverá manter-se?

Nunca vi o outro lado da cerca, não sei o que poderá vir de lá nem como tratá-lo deste.

O senhor teria provavelmente de se conceder à mudança deste lado da cerca, modificar o estado adquirido, incluir o que lhe fosse distinto.

Certamente. Não tenho, porém, conveniência nisso.

É a conveniência um direito? Não será tempo de modificar as premissas do direito ao espaço? Quem estabeleceu as regras?

Talvez quem tenha construído a cerca.

Postas as necessidades atuais, não consideraria apagar os traços ao espaço? Isto é, senhor, ultrapassar a cerca, abrir-lhe uma porta?

Isso transtorna-me. Deste lado, conheço tudo, aceito este espaço até à cerca como aquilo que é a verdade. Se abrir uma porta, terei de aceitar verdades que haja do outro lado. E se forem incompatíveis?

As verdades, senhor? Nesse caso, talvez estejam inexatamente categorizadas.

E como estabelecer a diferença?

Consideraria, ao invés, solucionar o problema na comunhão?

De que trata a comunhão?

Talvez de compreender, precisamente, que há perguntas a fazer, que existe todo um outro relevante, não obstante desconhecido, matéria do outro lado igual à deste.

O homem olhou para cima. Ficou curioso. Pôs-se em bicos de pés e tentou-se.

Olá, disse sem elevar a voz.

O choro deixou de se ouvir. Permaneceu o silêncio. Como se fosse corpo. Uma mão pequena do lado de lá alcança o topo da cerca. Depois, um nariz. O homem do lado de cá espanta-se.

O que é?, pergunta assustado ao inquiridor.

Não tema, permita conclusão.

Do corpo veio a perna. Segurando-se pelos braços, com uma perna de cada lado e o tronco apertado contra o cimo da cerca, uma criança olha atenta para o homem deste lado. O homem estende a mão, mas não alcança a criança.

O que faço?

Senhor, dê um passo em frente. Talvez mais perto melhor o compreenda.

O homem prepara o pé e lança-o em frente. Não é suficiente. A criança faz-se numa gargalhada. O homem sorri e acrescenta sem medo passos à distância. Estica os braços e auxilia a criança na descida. Ampara-a no colo.

É leve, diz encantado. De que lado és tu?

A criança olha-o e estuda-o. Diz-lhe qualquer coisa ao ouvido. O homem olha para o inquiridor.

Ela diz que a cerca está no meio. É uma surpresa. Julguei-me todo deste lado.

Não delimita. Antes interfere, portanto.

Que solução agora?

O inquiridor sorri e sai em silêncio.

O homem e a criança desmancham a cerca.

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